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Países como a Espanha, Holanda, Bélgica, Suécia, Noruega, Dinamarca, Canadá ou Reino Unido permitem a adopção de crianças por casais do mesmo sexo, alguns já há vários anos. E, a partir da próxima sexta-feira, o Reino Unido vai passar a permitir que as mulheres que recorrem a técnicas de procriação medicamente assistida (PMA), indiquem como “o outro pai (parent)” indistintamente um homem ou uma mulher. Vários outros países já o permitiam, mas a nova lei britânica, que entra em vigor no país que inventou a fertilização in vitro, vai ser mais um forte argumento de pressão para os que defendem a igualdade de direitos parentais entre casais hetero e homossexuais.
Mas, se há assunto que suscita paixões e argumentos arrebatados, é o dos direitos parentais dos homossexuais, mesmo que individualmente considerados, e – ainda mais – dos casais homossexuais. A prova disso é como, mesmo pessoas (e organizações) que defendem o casamento homossexual, param na fronteira da concessão dos direitos de adopção ou de recurso à PMA a casais do mesmo sexo. Não há muitos assuntos que nos interpelem tanto e sobre os quais receemos tanto decidir, como sociedade. Pelo que significam de alteração de papéis que nos habituámos a ouvir dizer que constituíam as fundações da nossa sociedade (e quem é que quer abanar as fundações da sociedade?) e pelos riscos que não estamos dispostos a fazer correr as nossas crianças. E, se há nos dois extremos “conservadores” e “liberais” com convicções definidas, há também, no meio, imensa gente que, mesmo quando é mais sensível a argumentos de um dos lados, se sente incapaz de tomar uma decisão. É particularmente curioso como muita gente que favorece os direitos dos homossexuais nesta matéria diz mais facilmente “penso que é algo que vai acabar por acontecer” do que avança uma declaração de apoio sem ambiguidades.
É o peso do argumento da “evolução natural” a fazer-se sentir. O receio de brincar a Deus ou aos engenheiros sociais. Mas não empurramos tantas vezes, para a frente ou para o lado, essa evolução natural das coisas e da sociedade?
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"Não podemos aceitar experimentalismos sociais, a criança não pode ser objecto de experiências mais ou menos vanguardistas ou correr riscos que poderão ser fatais. Não se trata de ser conservador, trata-se de aplicar um princípio de precaução que neste âmbito se justifica mais do que em qualquer outro.”
Apesar do que diz Vaz Patto, este é o argumento conservador por excelência, mas não é por isso que ele deve pesar menos. Pelo contrário, se há domínio onde a prudência, a escolha de soluções conhecidas e a recusa de riscos parece imperativa deve ser este. O argumento conservador parece aqui de grande sensatez.
Só que, quando a lei permite este tipo de soluções, ela não está a ser vanguardista ou experimentalista. A realidade é que há muitas crianças que vivem já e há muitos anos com pais homossexuais – ou com um progenitor biológico e o seu companheiro (ou companheira) ou nasceram já no âmbito de uma relação homossexual.
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A lei, mesmo quando parece avançada e mesmo quando é objecto de contestação, não está a fazer engenharia social, mas sim a enquadrar situações que existem no terreno e que até nem são tão raras como se pensa. Isto não significa que elas devam ser aceites por esse facto – há comportamentos que a sociedade reprova e que não vai legalizar apenas pelo facto de serem comuns. Mas significa que um dos argumentos mais vezes avançados contra as leis socialmente mais liberais – o de que vão abrir uma caixa de Pandora com consequências imprevisíveis – não tem muitas vezes razão de ser. A caixa de Pandora, se existe, já foi aberta há muito e ninguém reparou.
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“Há muitos estudos feitos desde os anos 70, tanto no Reino Unido como nos Estados Unidos, sobre o desenvolvimento das crianças educadas por casais do mesmo sexo”, diz-nos Susan Golombok, directora do Centro de Investigação sobre a Família da Universidade de Cambridge e uma das autoridades mundiais em famílias lésbicas. “Nessa altura não se sabia nada sobre isto e estes estudos foram desencadeados por casos judiciais de custódia de crianças em casos de divórcio. Mais tarde, com a difusão do recurso a PMA por parte de casais de lésbicas, houve uma proliferação de estudos. E a verdade é que estas crianças – e estes jovens, porque nós seguimos as crianças até à idade adulta – não apresentam diferenças significativas em relação a quaisquer outras do ponto de vista do bem-estar psicológico, do comportamento, do ponto de vista do desenvolvimento do género, da identidade de género, quer, especificamente, do ponto de vista da sua orientação sexual. Não há mais homossexuais entre os jovens que foram educados por um casal homossexual do que na população em geral.”
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É verdade que já há (sempre houve e hoje há mais ainda) famílias sem pais (e crianças criadas apenas pela mãe ou pela avó), mas nenhum pai pode imaginar sair de cena sem experimentar uma profunda sensação de perda – para si e para os seus filhos. Há uma morte simbólica do pai. Imaginar a nossa família sem nós não pode deixar de ser uma experiência de luto e é isso que alguns homens sentem ao imaginar-se excluídos do quadro onde sempre estiveram – e onde por vezes se imaginam ao centro, com a mão na espada e o olhar no horizonte. Mas a questão é que não se trata de expulsar do paraíso doméstico os homens que lá estão. A questão é simplesmente a de imaginar e construir outros universos domésticos onde não há homens. E o mesmo se poderia dizer das mães.
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“Aquela visão de sonho da família idealizada: um par heterossexual, duas pessoas jovens, bonitas, saudáveis, cultas, sofisticadas, bem formadas, que adoram os filhos, que nunca perdem a paciência, que nunca se zangam, que nunca se enganam, que nunca erram, que nunca se cansam – os YAVIS, Young, Attractive, Valuable, Inteligente and Sophisticated – não são a maioria das famílias e, se calhar, nem são nenhuma família, face a um olhar mais profundo”, diz Margarida Gaspar de Matos. “Não há famílias ‘excelentes’. A argumentação à volta da competência pessoal, afectiva, e social de um casal homossexual na educação de um filho parte unicamente de vários preconceitos e estereótipos que não resistem a uma observação mais profunda.”
Há outro aspecto já referido de passagem, mas que merece uma atenção mais profunda no caso de crianças filhas de duas mulheres: a pressão social. Mesmo que a sua vida familiar seja cheia de afecto e segurança, estimulante e equilibrada, o olhar dos outros, a censura, a discriminação não podem ser origem de sofrimento para as crianças?
“Penso que o único problema que surge no caso de os pais terem o mesmo sexo é mesmo a pressão social que se exerce sobre os pais e a criança”, diz Margarida Gaspar de Matos. “Esse peso da norma e da discriminação não é menosprezável e até pode ser muito invasivo. Só que o problema não está na identidade ou orientação sexual dos cuidadores, mas na energia que a criança tem de despender face a um ambiente hostil e culpabilizador.”
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A discriminação social, porém, dificilmente pode justificar uma atitude de obstáculo à parentalidade de casais de gays ou lésbicas. Se assim fosse, o mesmo princípio, em nome da protecção dos interessados contra a crítica, poderia ser usado para proibir qualquer situação que pudesse ser objecto de censura social. Estaríamos a somar uma agressão a outra.
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Enquanto o debate não se generaliza e os políticos não abordam a questão legislativa, e independentemente da opinião que cada um tenha, é importante lembrarmo-nos de uma coisa: casais de homens gays e de mulheres lésbicas já existem. Homossexuais sós que vivem com um ou mais filhos, biológicos ou não, também. Casais de mulheres ou de homens com um ou mais filhos, filhos biológicos de um deles ou adoptados, também existem. O que se irá discutir um dia é apenas como lhes vamos chamar e se o seu estatuto será assumido com honestidade pelo resto da sociedade, ou se teremos de continuar a encontrar eufemismos para falar da situação familiar destas pessoas que vivem à nossa volta, que são os nossos familiares, os nossos colegas, os nossos amigos, os nossos pais e os nossos filhos.
in Público
Vale a pena ler a noticia na totalidade.